Desde 1972 a arte da imagem em fotografia, cinema e TV ganhava um profissional que não apenas chegava, mas faria e que continua fazendo história com seus trabalhos marcantes. Com formação em Design Gráfico pela Escola Superior de Desenho Industrial do Rio de Janeiro (ESDI) e herdeiro do Cinema Novo, você com certeza já se deparou com essas poesias em forma de imagens.
Filmes como Lavoura Arcaica, Abril Despedaçado, Madame Satã, Central do Brasil, Amarelo Manga e Getúlio contaram com a sua direção de fotografia. Já na direção trabalhou em obras como o documentário Janela da Alma (2001), junto com João Jardim, Cazuza: O Tempo Não Para (2004) e Budapeste (2009). Dono de várias assinaturas conforme exige cada trabalho, de fora, ele se vê como vários em um.
Além desta trajetória, conta também com algumas publicações como Contrastes Simultâneos, pela Cosac Naify, e exposições coletivas e individuais no currículo.
Sejam bem-vindos para conhecer um pouco mais desse paraibano, nascido em João Pessoa, em 1947, Walter Carvalho.
1 . Como foi seu início de carreira? Você encontrou a fotografia ou ela que lhe encontrou?
Quando criança passava férias no interior do meu estado. Era um lugar mágico, lugar de imaginação.
Um dia apareceu na casa dos meus parentes onde estava de férias um homem grande de bigodes largos. Parecia ser estrangeiro.
Trazia com ele um equipamento estranho na visão de uma criança. Tratava-se de uma câmera fotográfica de madeira sobre um tripé também de madeira. Ficamos eu meus primos a observar enquanto o homem manobrava seus aparelhos. Sentou meus tios num sofá Thonet e acionou um flash de magnésio em plena luz do dia, aquilo me pareceu um imenso relâmpago, clareou tudo.
Bom tudo aquilo era um espetáculo fantástico para uma criança. Tempos depois, não consigo precisar se nas mesmas férias ou se no ano seguinte vi sobre a cristaleira da casa da minha tia a foto deles estampada num solene prato decorativo.
A imagem impressa teria sido aquela cujo homem grande de bigodes largos havia tirado com seus aparelhos. Fiquei intrigado com aquela imagem e como ela foi parar naquele prato. Um mistério que gravei para sempre na memória.
Você pode está imaginando que fui ser fotografo por causa desse ocorrido na infância. Não, não foi.
Mas posso assegurar que de alguma forma aquilo mexeu com minha imaginação para sempre. E até hoje a questão da imagem me persegue sem que eu consiga me libertar dela. Não me fez fotografo, mas me inquieta até hoje. Uma questão sem cura, portanto.
2. Acredito que estudar a história e referências da fotografia é obrigação básica e contínua para todo fotógrafo e que o diferencial está também em “beber de outras” fontes das artes visuais. Qual sua opinião sobre isso e suas referências dentro e fora da fotografia?
Tenho dificuldades de responder a esta pergunta. Talvez porque nunca me detive na história da fotografia propriamente. Comecei estudando pintura muito jovem e não estudei para ser pintor, estudei porque sentia uma atração pelas tintas e pela superfície em branco. Este sim é meu desafio até hoje. Diante de uma superfície em branco me sinto indefeso e desafiado. Me exercito até hoje com os pincéis. Minhas referências sempre foram, desde o início, os poetas e os pintores. Fui muito influenciado pelas canções de Bob Dylan, talvez pela idade. Os poetas me guiam e a Renascença são minhas referências para sempre e estou sempre recorrendo como uma fonte inesgotável. Estudo todos os dias na verdade, tenho medo de perder o contato com o mundo real e só estudando posso me sentir mais protegido. Claro, a história da fotografia é um dos meus estudos.
3. Para você uma fotografia deve explicar e revelar ou deixar uma perguntar e alimentar a imaginação?
A fotografia é um segredo de um segredo. E diz Diana Arbus: e quanto mais informação fornece menos você sabe sobre ela. A fotografia deve deixar mistérios e indagações. Nunca é uma resposta, a fotografia será sempre uma pergunta.
4. O processo que utiliza na definição de uma linha a ser seguida na criação da estética da imagem para um filme ao ler um roteiro, é o mesmo, por exemplo, na produção de uma série fotográfica?
Primeiro que tudo a leitura do roteiro ou qualquer texto correlato. Estabeleço um caminho (tortuoso) e sigo.
Nada me impede de mudar no percurso. Construir uma imagem é antes de tudo um processo dinâmico e você deve ficar esperto para se deixar levar pelo inesperado. Às vezes me obrigo a tomar um destino que não estava traçado e deixar de lado aquilo que no início foi um princípio. O processo toma conta de você, mas é preciso conduzir o que te conduz. Contraditório, não?
Na verdade, só entendo e descubro o que fiz depois de fazê-lo.
5. Qual seu trabalho fotográfico que mais lhe marcou e por quê?
O próximo. Porque não sei qual é ainda. O próximo será o grande desafio.
6. “A luz verdadeira nem sempre é a luz justa. Assim ela deve ser reinventada.” Em cima desta frase do Henri Alekan, gostaria que falasse como foi realizada uma das cenas de Central do Brasil, na qual o menino Josué corre da personagem Dora pelo meio de uma procissão.
Henri Alekan, mestre incansável! O trabalho dele é um exemplo para todos nós.
No caso do Central do Brasil, aquela luz nasceu a partir da memória da minha infância que via os fiéis com tochas de velas acesas nas mãos. Vi muita procissão “se arrastando que nem cobra pelo chão”.
Sempre me impressionou essa imagem.
Em Central do Brasil eu juntei a memória com poucos recursos de parque de luz que dispunha para iluminar uma sequência grande e com grandes espaços. São velas, mais de 500 nas mãos de cada romeiro.
A luz deve vir do desejo.
7. Fala-se muito que o fotógrafo precisa ter uma assinatura, uma identidade em suas fotos. Mas não ter uma identidade também não seria uma identidade? Afinal, cada trabalho/tema tem uma personalidade diferente e exige uma determinada abordagem de linguagem sobre o que se deseja expressar. O que pode falar sobre este assunto?
Eu tenho várias assinaturas. Quando me olho de fora me vejo vários. Não quero dizer que sou bom por isso, em absoluto. É mais no sentido que a foto para mim nasce a partir do momento em que enxergo alguma coisa como uma imagem. Então qualquer objeto pode ser uma expressão imagética. Não tenho regras, o desafio acontece em qualquer lugar, é inevitável.
Aí a danação se dá. No início é o caos, depois me encontro ou sou encontrado pelo momento. Uma foto nasce em três momentos. Mas aí é assunto longo e acho que não cabe aqui.
Admiro muito os fotógrafos que tem um trabalho sobre determinados temas. Eu não consigo, o meu tema pode estar ao lado do meu quarteirão onde vivo ou no mais longínquo dos recantos. Em 2018 fui especialmente ao New México (EUA) para encontrar uma imagem que desejava deste os tempos em que fotografei a série América, de João Salles. Ficou guardado na memória desde 1988 uma imagem que vi pelos desertos do oeste americano.
Voltei lá para encontrá-la.
8. Nos filmes em que trabalhou, a questão visual/estética da imagem é algo bem marcado, ela “fala alto” e percebe-se todo esse cuidado com as unidades de formas, luz e composição. Seu contato no início com o design também ajuda e lhe influência nesses momentos?
Com certeza minha formação como designer me colocou a vontade para me entender melhor com as questões visuais. Mas, por trás me guiam sempre os poetas e a Renascença. E de um tempo para cá, eu descobri que deveria colocar a luz em segundo plano. Por quê?
Porque o quadro deve me conduzir, ele me organiza. E não se trata de enquadrar apenas. Criei uma expressão para isso: enquadradar. Ou seja, você não enquadra o que está olhando, mas o que te olha se enquadra.
É longo, não poderia discorrer aqui, preciso de tempo.
9. Ainda sobre o tema estética visual gostaria que fala-se um pouco especificamente de Lavoura Arcaica (2001)?
Requer tempo, muito tempo. Lavoura levou muito tempo para acontecer. É um trabalho que começa entre eu e o diretor Luiz Fernando Carvalho muito antes do filme sequer existir enquanto projeto. Falávamos de um filme que faríamos um dia sem saber que filme e quando.
Um exercício constante de reflexão, pensamento e vivência durante anos de amizade e quando surgiu em nossa frente a ideia de filmar o livro de Raduan Nassar já tínhamos ele pronto entre nós. Só que não sabíamos exatamente. Daí o processo foi nascendo e me conduziu para um lugar que às vezes não tinha consciência e clareza de tudo. Outras vezes precisava inventar ou descobrir. Fazer um filme e viver é a mesma coisa.
Foi uma experiência única.
10. Como você define a sua fotografia e de que maneira inicia um trabalho?
Minha fotografia não tem definição.
Fotografar é encher os olhos de sonhos. Posso fotografar um rosto ou um objeto sem função. Ou posso fotografar apenas uma ideia. Portanto, não há como definir. E penso mais: definir uma coisa é substituir a coisa pela definição.
O início é caótico. Uma danação, depois vou encontrando no desassossego o desequilíbrio e a harmonia entre as coisas. Deixo sempre um espaço para aquilo que vou encontrar no processo. Há uma dinâmica interna que precisa ser desafiada.
Não posso saber antes o que quero sem mergulhar fundo no desconhecido. A gente precisa escutar o que vê.
11. Deixe uma mensagem sobre o bom fazer fotográfico.
Henri Cartier Bresson diz que, em tradução livre: as suas primeiras 10.000 fotografias são as piores.
Foto/capa: arquivo pessoal